Uma
das curiosidades que sempre tive é a de saber qual o primeiro contato das
pessoas com um livro. Meu primeiro contato com um não representou minha
primeira leitura, o que só aconteceu com “O Pequeno Príncipe”, bem depois. Mas
foi algo que marcou minha infância como uma boa recordação de gente que eu
amava, e também agora com a descoberta de que o primeiro livro que me puseram
em mãos fora escrito por... James Joyce.
Foi
durante o que antes se chamava de alfabetização
que Tia Silene me deu o livrinho colorido com a figura do diabo na capa.
Lembro-me de ter sentido um pequeno mal-estar pelo título e por ter o “coisa
ruim” envolvido. A imagem evocava realmente coisas terríveis em minha mente
infantil por causa de minha formação religiosa. Mas o fato de ter desdenhado o
livro tinha mais a ver com meu interesse quase que exclusivo por quadrinhos
àquela época. Aceitei de bom grado o presente da professora, com muita polidez,
pois sabia do apreço dela por mim (que saudade, tia!). Mas assim que cheguei em
casa, o livro foi parar no sofá e ficou lá por uns dois ou três dias.
Até
que minha avó me chamou muito empolgada. Ela lera o livro, achou a historinha
engraçada e veio me contar, acho que ela não sabia que o livro era meu.
Mostrou-me as figuras, contou-me tudo o que havia lido e fiquei surpreso por
perceber que também gostara do que estava escrito. Talvez tenha sido o momento
em que me dei conta de que os quadrinhos não eram a única coisa legal para se
ler.
Aquele
exemplar infelizmente se perdeu e apenas o episódio ficou em mim como uma das
muitas recordações que tenho de minha avó (que foi a pessoa que mais me
incentivou a ler) e de Tia Silene (que eu queria muito poder reencontrar), mas
felizmente eu pude reviver graças a esta edição de 2012 da Cosac Naify que é
linda.
A
tradução da Lygia Bojunga, autora que marcou presença em outros momentos de
minha vida, faz jus ao que promete, pois apesar de ser um livro infantil, ela
respeita duas coisas importantes nesta leitura: a capacidade de compreensão das
crianças (que não é subestimada nem mesmo quando nomes e passagens em francês
são mantidas) e o peso do nome de Joyce. E é curioso notar que o próprio autor
escreveu a história (baseada num conto popular francês) em carta para seu neto
Stephen. Ao que parece, a missiva foi enviada junto com um gato de brinquedo
cheio de doces dentro, o que serviu de mote para que o escritor não perdesse a
chance de contaminar o pequeno Stevie com o amor pela ficção. E não era isso
que minha própria avó estava fazendo quando me chamou naquela tarde?
Mas
o que realmente me encantou nesta edição foram as incríveis ilustrações em
aquarela do mineiro Lelis. Tenho uma enorme afeição por aquarela e a arte do
livro salta aos olhos já na capa com um gigantesco demônio vermelho fazendo levitar
um pedaço da ponte que prometeu ao prefeito de Beaugency em troca da primeira
alma que a atravessasse. Foi uma grande sacada ter representado o diabo com a
imagem do próprio Joyce e os detalhes dos prédios e ruas consegue manter aquele
equilíbrio do qual falei acima, respeitando tanto a visão da criança quanto o
material ímpar forjado pelas mãos de um gênio conhecido. Acabei me tornando fã
do Lelis, que apesar de ser um desenhista premiado (inclusive com o prêmio
HQMix) eu só pude conhecer agora. Só aumenta o valor do presente. Se a edição
que Tia Silene me deu contasse com o traço de Lelis, talvez eu não a tivesse
deixado de lado naquele tempo.
O
Gato e o Diabo é um daqueles exemplos de histórias infantis que não se
preocupam em passar lições aos pequenos leitores. Hoje em dia, o compromisso de
ter um “moral da história” no final é até combatido, inclusive por escritores
que eu admiro como Neil Gaiman. Acho importante que crianças leiam histórias
mais comprometidas e declaradamente educativas, mas é necessário que elas
naveguem nesses mares ousados da ficção para que suas mentes se tornem alertas
à diversidade em todos os sentidos.
Quando
Joyce apresentou o conto a seu neto, tinha um objetivo que em sua mente estava
claro. Talvez fosse mesmo despertar algo no menino, talvez fosse somente o de
entretê-lo. O fato é que a história, que tem muito a ver com ganância, política
e as artimanhas dos adultos, desempenha seu papel de diversas formas. E me
pergunto se o irlandês autor de Ulysses
tinha noção de que seu intuito para com Stevie se cumpriria, com tanta
completude, para com tantas crianças ao longo destes quase oitenta anos.