O homem... |
No
início dos anos 2000, quando eu ouvia a expressão “Dago Red”, havia nela um
significado que ia além das palavras. Era uma das melhores bandas locais que já
tinha ouvido e para mim isso bastava.
O filme... |
Mais
ou menos na mesma época, fiquei sabendo de um filme com o Colin Farrell e a
Salma Hayek sobre a sofrida jornada de um aspirante a escritor na Los Angeles dos
anos 30. Era Pergunte ao Pó. Fiquei
interessado na história, esperei ver o filme no cinema, mas como não houve
muito alarde a respeito, nem sei se estreou por aqui. E apesar de até hoje
ainda não tê-lo visto, um nome ficou marcado em minha mente que, na época, não
tinha referências para associar uma das minhas bandas favoritas ao escritor
(quase personagem) do filme que me tocou sem mesmo ter visto.
Passados
mais de dez anos, numa das inúmeras pequenas coincidências que acontecem
comigo, acabei achando na casa da minha mãe o cd da banda. Antigo e
injustamente esquecido pelo meu irmão no fundo de uma caixa mofada, estava o
espírito de uma época que ecoou de novo em meus ouvidos e fez meu coração bater
mais forte.
A Banda... |
Na
mesma semana, ao buscar livros de contos , trombei com um
Fante. Lembrei-me do escritor e do filme, ambos
escondidos na mente, ambos ainda não explorados. O livro era Vinho da Juventude. Quando folheei, a
primeira coisa que li foi: “Dago Red”. Para mim isso foi mais que um chamado.
Ao
longo dos vinte contos de O Vinho da
Juventude, a vida de Fante se desvela diante de nossos olhos com humor,
poesia e um pouco da sordidez de um tempo em que a família era o pilar da
Sociedade Civilizada, mas dentro da qual pequenos barbarismos estavam tão
consolidados que pareciam quase ser a liga dessa instituição, hoje tão mais
frágil. Ali, Fante usa Jimmy Toscana, um de seus famosos alter egos para narrar,
nas aventuras, percalços e dramas autobiográficos, o duro processo de
crescimento. Na voz inocente, deslumbrada e por vezes duvidosa do menino Jimmy,
essas histórias nos aparecem na forma de um retrato muito humano da época e
daquele seu limitado nicho social.
Finalmente
conheci o significado da expressão “dago”, que indica uma designação
depreciativa para as pessoas de origem italiana semelhante a “carcamano”. E
“red” associado é uma menção ao vinho de mesma origem, muito apreciado na época
da Lei Seca. Dago Red, portanto, foi
o título escolhido para a primeira parte do volume, onde estão as memórias de
Jimmy no convívio com os demais membros da família Toscana, os pequenos
arroubos de delinquência junto aos colegas de rua e a rígida disciplina
Católica recebida na escola. Tudo aparentemente em ordem cronológica, embora
uma das poucas, porém mais valiosas referências temporais seja a linguagem e a
elaboração de pensamentos de Jimmy que evolui à medida que sua idade avança a
cada conto.
A
segunda parte, Histórias Tardias,
traz contos com a mesma temática e ambiente dos anteriores, porém com outros
alter egos. Os dois últimos contos formam uma curiosa composição que nos
delicia ao imaginarmos que Fante os pôs em sequência para que apreciássemos o
funcionamento de seu processo criativo. Em
O Sonhador, o narrador, um escritor
às voltas com um terrível bloqueio criativo, consegue extrair o material
necessário para vencê-lo ao auxiliar seu vizinho que nutre uma paixão platônica
por uma cantora de bar. No conto seguinte vemos o que seria a sutil e
genialmente não expressa apresentação do material produzido por esse escritor.
Em Helen, tua beleza..., o
protagonista é um estivador que nutre uma paixão platônica por uma dançarina e
é auxiliado em dado momento por um amigo escritor.
E assim
descobri o gigante espectro de Fante.
O livro... |
Ao
ler O Vinho da Juventude senti-me
tocado pelas vivências e impressões de mundo ali narradas (e mais
especificamente daquele microuniverso ítalo-americano) de uma forma completa.
Por mais específicas que fossem as passagens na vida de Jimmy Toscana, cada
sentimento que ele expunha ou deixava implícito suscitava uma sincera
identificação, como se ele mostrasse magistralmente que experiências humanas,
emoções, medos e culpas são nossas marcas universais, aquilo que nos torna irmãos,
pais e mães de uma mesma enorme e tempestuosa família Toscana. Com todo amor,
ódio, negação e expectativas que uma família compartilha.
Isso
aparece na fascinação edípica pela mãe em Sequestro
em Família, confirmada na admiração pela figura quase onipresente do pai em
toda sua autoridade arbitrária, viril, contraditória e machista. Esse mesmo
machismo paquidérmico deixa vazar a humanidade e empatia nos sentimentos que se
esforça para esconder em Um de Nós,
sobre a morte precoce do primo de Jimmy, abalando toda a família. E em Odisseia de Um Carcamano, no qual vemos sua
negação adolescente das raízes para então perceber a importância delas, o que
se consolida na fé poética, nada mais que um abraço inevitável na maturidade a
essas mesmas raízes em Ave Maria.
Sempre
gosto de pensar que sei que estou diante de uma grande obra quando, ao
desfrutá-la, não consigo controlar o fluxo de emoções misturadas. Dentro de sua
destreza narrativa, Fante é capaz de despertar nossa empatia pelo drama vivido
pelos personagens e ao acompanha-los em seus sofrimentos, as lágrimas podem
rolar no rosto ao mesmo tempo em que gargalhamos pela forma tão sinceramente
despojada como Jimmy nos conta esses momentos que, de outro modo seriam de
angústia e dor. Dentro de sua própria mídia, um contemporâneo de Fante,
Chaplin, dominava essa mesma capacidade da arte, de nos mover por dentro, de
nos revirar e enxergar melhor aquilo do que somos feitos.
Fante
perscrutou sua própria história, suas vivências, ao longo de sua carreira. Foi
também roteirista de Hollywood e até sua morte devido a complicações do
diabetes na década de oitenta, já cego e ditando seu último livro à esposa,
ainda mantinha o vigor e o prazer de fazer de sua própria vida a matéria prima
principal de sua escrita. Ele extraiu daí o sumo que se tornaria o melhor “carcamano
vermelho” que se pode beber hoje. E como todo bom vinho, quanto mais velho,
mais importante e saboroso se torna. Com O
Vinho da Juventude pude ter minha primeira grande ressaca. E certamente não
será a última.
Trecho:
“Vou olhar para meu ai por cima da borda
da taça de vinho. Vou ver a mim mesmo. Conhecerei de novo a veia de crueldade e
perfídia que corre dentro de mim olhando para meu pai. Vou olhar para as mãos
do meu pai e um nojo e uma revolta se operarão dentro de mim, pois meu pai
ainda tem as sementes da grandeza dentro de si, mas elas foram sufocadas pela
perfídia e crueldade que , eu sei – sempre tarde demais -, habitam em mim. Meu
pai vai captar o meu sentimento e em seus olhos poderei vê-lo refletido e ele
verá o mesmo segredo em meus olhos e não teremos queixos fortes o suficiente
para fitar um ao outro e deixar que aqueles dois pares de olhos colidam e matem
o ar de emboscada que existe nos olhos de nós dois.” – conto:
Lar
Doce Lar
Livro: O Vinho da Juventude
Autor: John Fante