quinta-feira, 4 de junho de 2015

NOSSAS VIDAS DE PAPEL - por Ed de Vortex


Não lembro quando decidi ler John Green. Para mim parecia algo obrigatório, já que nunca acompanhei direito os livros “da moda” e queria conferir melhor o que há alguns anos tem crescido a olhos vistos como um novo gênero na literatura, o chamado YA.
Essa é a sigla para young adults ou, se preferir, jovens adultos, no nosso bom e velho Português, e supostamente indica um tipo de texto direcionado a pessoas que se encontram na pós-adolescência, período entre o final do Ensino Médio e os primeiros anos de faculdade. Tudo isso eu tenho capturado de comentários, de forma muito superficial e os mais entendidos em YA deverão com razão se manifestar, mas pelo pouco que pude constatar dos livros que usam essa abordagem, não passa muito do que se lê por aqui há tempos e que ninguém se deu ao trabalho de destacar da classificação de infanto-juvenil.
E a verdade é que não importa. Quem liga se Júlio Emílio Braz, ou Ganymédes José, ou Giselda Laporta Nicolelis é YA, infanto-juvenil ou o escambal a quatro se o texto continua sendo bom?
E John Green é muito bom. Logo nas primeiras páginas de Cidades de Papel é possível entender que a linguagem não pretende ir muito além. No começo, fiquei meio incomodado com isso por achar que era uma forma do autor subestimar a capacidade de envolvimento do seu público-alvo com um estilo mais rebuscado. Mas isso logo vai embora quando Green começa a jogar com elementos mais fortes e deixa claro que o que deseja é fazer um grande contraste entre o estado inicial dos personagens e as transformações que vão sofrendo ao longo da história.
Quentin, mais conhecido como apenas Q, é um adolescente no último ano do Ensino Médio que passa seus dias jogando videogame com os dois melhores amigos Ben, o sem-noção que sonha em ser popular antes de se formar no ginásio e Radar, o geek obcecado em alimentar o Omnidictionary, uma espécie de versão johngreeniana da Wikipedia, e cujos pais são os maiores colecionadores de papais noeis negros dos EUA. Quentin alimenta uma paixão completamente anacrônica por Margo Roth Spielgeman, a garota mais popular do colégio. Os dois, apesar de não se falarem há anos, possuem sim uma ligação, pois quando eram melhores amigos de infância, longe das pressões do ingrato sistema de castas sociais do ambiente escolar americano, acabaram encontrando no parque o corpo de um homem que cometera suicídio. O evento marcou os dois de forma diferente, mas também os manteve ligados, apesar do distanciamento que a adolescência acarretou.
Até que numa madrugada Margo invade o quarto de Quentin e pede que ela a ajude em onze tarefas ao longo da noite. As tarefas consistem em vingar-se dos inimigos de Margo, incluindo seu ex-namorado traidor e terminar invadindo o Sea World (eles moram em Orlando). Quentin se mostra relutante, mas aceita colaborar com sua linda e persuasiva musa. O problema é que no dia seguinte a menina some completamente. Seu sumiço provoca uma série mudanças, não só na dinâmica de relações de amizade da escola, às vésperas da formatura, mas também na mente de Quentin. Margo deixa uma série de pistas para Quentin, que entende que ela deseja ser encontrada por ele. Enquanto tenta desvendar o mistério do paradeiro de Margo, ele vai descobrindo várias camadas na personalidade dela que ficavam escondidas por trás de seu status. Então, a menina mais bonita e superficial da escola acaba se revelando cheia de grandes pensamentos, apreciadora de folk, poesia e viagens.
O Clube dos Cinco. 
Depois de passear mais uma vez pela saturadíssima e incansavelmente explorada problemática popularidade/bullying/aceitação, que é um pouco pano de fundo da história, ficamos com a impressão de que já vimos isso milhares de vezes. Jovens descobrindo a si mesmos e seus semelhantes numa jornada de transformação, dura e complicada para uns, fascinante e aventuresca para outros. Como em “Curtindo a Vida Adoidado” e “Clube dos Cinco”, famosos filmes de adolescentes de John Hughes dos anos 80. Mas Cidades de Papel é para ser assim mesmo.
Quando Margo vai embora deixando seus rastros para Q, ela não quer apenas ser encontrada. Ela quer que ele se encontre. Quer que ele trace uma jornada própria em que o destino pouco importa, mas sim o próprio caminhar, o crescimento, a descoberta. E foi a esse caminhar traçado por Green que me liguei mais.
Não foi só Margo que deixou pistas, mas o próprio autor plantou algumas. Posso apostar, por exemplo, que o nome da Dra. Holden a quem Quentin pede auxílio para tentar desvendar as intenções de Margo ao usar um poema de Walt Whitman, é uma alusão a Holden Caulfield, de Apanhador no Campo de Centeio. Margo seria um reflexo do mais ilustre personagem de J.D Salinger, sempre apontando seu dedo questionador para a falsidade das pessoas e nada mais pertinente aqui do que brincar com essa referência. É engraçado pensar também na possibilidade de Cidades de Papel já ter deixado alguma marca na cultura pop, principalmente quando Margo, um exemplo de mulher impetuosa e livre, aprecia Mountain Dew (energético vendido lá pelos EUA) e Nova York, cita Whitman e questiona o modo de vida americano, e Lana Del Rey, uma cantora pós-2008 (ano de publicação do livro) com características semelhantes à personagem, também o faz em seu primeiro grande disco.
Os Vlogbrothers. Green não é o de verde ;)
John Green parece ser em sua vida o mesmo tipo de nerd que Quentin representa. Uma pessoa centrada e sensata, empática com os problemas dos outros e do mundo, mas tentando provocar pequenas mudanças de dentro mesmo de sua zona de conforto. Tem seu Vlogbrothers, o canal de vídeos em que discute com o irmão vários temas, inclusive humanitários e com isso arrastou uma legião de fãs que por sua vez integram os Nerdfighters, que acabaram se mobilizando para ajudar pessoas também. Não acompanho o canal, nem tampouco me considero um nerdfighter, mas querendo ou não, aqui estou eu, de frente para o computador, encaixado talvez na mesma categoria de nerd a que John Green pertence. E sempre compartilhei do fascínio por essas figuras incríveis que vez por outra invadem nossas vidas e nos avisam que precisamos sujar nossos pés de lama, sermos mordidos por cobras, invadir as cidades de papel e acordar as pessoas de papel que nelas vivem.
Aqui, Margo é a personagem que menos aparece fisicamente, mas acaba sendo a personagem mais importante. É em torno da concepção de vida dela que o enredo se constrói. Duas das três partes em que se divide o livro, O Fio e A Relva, por exemplo, representam metáforas dela para o significado da vida e das relações entre as pessoas e mostram Q traçando sua trajetória a partir desse ponto de vista. A última parte, porém, O Navio, é uma metáfora construída por ele, para nos dizer que esses dois personagens se completam, que não podem alcançar a plenitude sozinhos, por mais que tentem. E que viver é ligar-se ao outro, embora nem sempre isso signifique estar perto.
Mas para mim, que fui apaixonado por mais de uma Margo ao longo de minha vidinha de papel, o presente mais delicioso de Green foi nos dar esta que é uma mulher de papel, tão imperfeita, humana, que a gente quase sente ser de verdade.
Espero que o filme seja tão bom quanto o livro.

Trecho:
”Você sabia que na maior parte de toda a história da humanidade a expectativa média de vida foi inferior a trinta anos? Você podia contar “com mais ou menos uns dez anos de vida adulta, certo? Não havia planos de aposentadoria. Não havia planos de carreira. Não havia planos. Não havia tempo para planejar. Não havia tempo para o futuro. Mas aí a expectativa de vida começou a aumentar, e as pessoas começaram a ter mais e mais futuro e a passar mais tempo pensando nele. No futuro. E agora a vida se tornou o futuro. Todos os momentos da vida são vividos no futuro: você frequenta a escola para entrar na faculdade para arrumar um bom emprego para comprar uma casa legal e mandar os filhos para a faculdade para que eles consigam arrumar um bom emprego para comprar uma casa legal para mandar os filhos para a faculdade.” – fala de Margo.

Margo e Quentin no filme...